História

Evandro Matos: “As aventuras de um raulseixista numa cidade do sertão”

Ainda no período ginasial, e residindo na zona rural da minha Riachão do Jacuipe. Levava uma vida dura, de trabalho e estudo, e pouca diversão. De repente, surge para mim algo diferente das canções melosas, que não me prometia uma banda do céu, mas me proporcionava conquistar o mundo.

Lembro que, quando não havia aula no último horário do turno matutino, corria do Ginásio Nossa Senhora da Conceição para casa, a tempo de ouvir ‘as primeiras colocadas’ dos programas matinais das emissoras de rádio. Claro, lá estava uma música dele, fosse qual fosse. 

Estava diante das canções de Raul. Inocente, puro e besta (como ele mesmo dizia), um menino encantado por algo ainda não visto. Brumas, trombetas, megatons, o Velho Éon, apocalipse. Palavras enigmáticas e encantadoras, versos e músicas que ainda não havia experimentado.

Por culpa dele, corro ao dicionário. Lá, contudo, não me dizia quem era o Velho Éon de O Trem das Sete. Raul foi além do Aurélio, de Buarque de Holanda, me levando à Bíblia. E foi assim a vida inteira, a cada dia uma surpresa, a cada dia uma nova descoberta.

“As aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor”, que inspira o título desse texto, me perturbou por uns bocados de dias. O que esse ‘cara’ quer dizer com isso, o que é “linha evolutiva da música popular brasileira?”, indagava, e ninguém para me responder. 

Fã incondicional, vivia sem condições para me aproximar do meu ídolo. Sem alternativas, o rádio era minha grande busca. Um dia, contudo, remexendo o guarda-roupa de uma irmã (não vou revelar qual para não ‘entregar’) deparo-me com uma revista que trazia na capa uma foto de Raul. Abri, folheei e fiquei e pensar: “Pego ou não pego para mim?

Confesso que não lembro o desfecho, mas voltei várias vezes para revê-la, para me debruçar sobre as primeiras informações daquilo que, para mim, representava uma raridade. Foi como ter encontrado uma pedra de ouro num deserto sem fim. E dentro da minha própria casa.

Pouco tempo depois, emancipado, vejo Raul em carne e osso, num show em Senhor do Bonfim. As imagens me escorregam na memória, mas algumas ficaram para contar a história. Final do show, Raul se dirige à boate Arara, então uma das mais famosas do interior baiano. E eu, colado, observando…

Próximo da boate, Raul é cercado por uma legião de fãs. Logo chegam a policia e seguranças. E ele, como sempre, fiel a ele mesmo: “Deixa o povo”. Espaço livre, todos se aproximam. Ele, novamente, sabiamente: “Vamos!”. E seguiu para a boate, com todos atrás, sem incomodá-lo.

À medida que o tempo passava, aumentava o meu fanatismo pelo roqueiro baiano. De quem era filho, onde havia nascido? indagava a mim mesmo. “Eu nasci em Creguenhem, são quatro horas de trem…”, coisa assim, dizia um dos seus versos para me confundir mais ainda.

Descobri o telefone da residência dos seus pais, em Salvador. Dona Maria Eugênia e seu Raul Varela Seixas. Dona Maria Eugênia, então, sempre solicita, compreendia a sede de um fã tão distante e tão ávido por notícias. 

A morte de Raul me pegou de surpresa, mas já acompanhava a decadência do mito, entregue ao álcool e às drogas. Como comandava um programa no rádio, fui lá fazer um especial. Afinal, eu também havia nascido “há dez mil anos atrás!”

Na faculdade, Raul ressurge na minha frente através de uma professora, que me sugeriu como tema da minha conclusão do curso de Jornalismo. Acho que foi a única vez que disse não a ele, certamente temendo não saber descrevê-lo. “Raul nunca esteve aqui, ele sempre pensou 20 anos na nossa frente; sempre morou em outro planeta”, definiu um arquiteto de Fortaleza (CE), quando da sua morte. Saberia eu descrever isso?

Passados todos esses anos, não me arrependo de nada. As canções de Raul me encorajaram a enfrentar a vida, a resistir, a conquistar o mundo: “Basta ser sincero e desejar profundo/ Você será capaz de sacudir o mundo/ Vai! Tente outra vez!”. E como eu tinha “dois pés para cruzar a ponte”, fui à luta.    

Por fim, o que me faz seguir em frente com a bandeira de Raul é que, cada vez mais, os que me chamaram de ‘louco’ por admirá-lo se renderam aos seus versos profundos. E me regozijo mais ainda quando vejo jovens correndo atrás do espólio de Raul, dos versos de Raul, do jeito de Raul.

Enfim, “Eu conheço bem a fonte/ Que desce daquele monte / Ainda que seja de noite/ Porque ainda é de noite! / No dia claro dessa noite! / Porque ainda é de noite”.

Por Evandro Matos

       

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