Quando, em 1897, cerca de 15 mil soldados das tropas da recém proclamada República brasileira e do governo da Bahia cercaram, em sua quarta tentativa, os crentes e jagunços que seguiam o pregador Antônio Conselheiro na cidade de Canudos, no sertão baiano, já se esperava um banho de sangue.
E assim foi. A raiva do governo – e da opinião pública – contra um Conselheiro antirrepublicano e líder de uma turba de miseráveis provocou a morte sumária de mais de vinte mil sertanejos, além da destruição da vila. Os canudenses foram, enfim, calados.
Mais de cem anos depois do massacre, Canudos não só continua a existir no sertão baiano (em sua terceira versão, já que a segunda foi inundada pela barragem de Cocorobó nos anos 1940), como cerca de cinco mil canudenses – os netos, bisnetos e tataranetos dos crentes e jagunços que lutaram por Conselheiro e conseguiram sobreviver – mantêm em São Paulo, para onde migraram nos anos 60 e 70, a União pelos Ideais de Canudos (UPIC).
É uma espécie de associação informal que todos os anos promove encontros regados a forró para relembrar a saga de Conselheiro e estreitar o senso comunitário canudense. É um grupo e tanto, levando-se em consideração que, na Canudos baiana, a população mal passa das 15 mil pessoas.
A ideia de criar a UPIC saiu da cabeça do assistente financeiro José Alôncio Ferreira Santos, de 45 anos, cujo bisavô, Serafim Santana, lutou ao lado do lendário Pajeú, um soldado de polícia que acabou virando um dos maiores líderes guerrilheiros de Canudos.
Os Santana, diz ele, era uma das três famílias que já estavam em Canudos (os Macedo e os Gama eram outras famílias) antes mesmo de Antônio Conselheiro rebatizar a cidade como Belo Monte. A família mudou-se para SP em 1965, época em que José Alôncio tinha apenas nove anos. Hoje ele é presidente da União.
“O governo militar tratava a guerra de Canudos nos colégios como um bando de baderneiros que foram disciplinados pelas Forças Armadas e eu nunca tive um conhecimento mais profundo sobre o episódio ou sobre minhas próprias origens”, conta Santos.
“Em 1992, voltei a Canudos pela primeira vez e vi que havia uma enorme cultura oral sobre a guerra que a gente desconhecia. Eram histórias da minha e de outras famílias. Na volta a São Paulo, com meu primo José Hugo dos Santos, meu tio Manoel Ferreira e outros migrantes da cidade, amadurecemos a ideia de uma associação informal. Em 1994, decidimos inaugurar a UPIC, porque ficamos surpresos com a quantidade de canudenses na cidade”, acrescenta.
Primeiro encontro
No primeiro encontro realizado ainda em 1994, o boca a boca trouxe 60 canudenses. Em novembro do ano passado, quando ocorreu o 10º encontro, a festa reuniu cerca de 1.500 pessoas que dançaram toda a tarde e à noite ao som de forró e sertanejo num salão alugado de um clube em Pirituba, na Zona Norte da capital paulista.
Com a popularidade da festa, o encontro passou a abarcar não somente os cerca de três mil canudenses e dois mil descendentes que moram hoje em São Paulo, mas também seus amigos locais e um bom grupo de gente de cidades próximas a Canudos e que, de uma maneira ou de outra, participaram da epopéia de Conselheiro, como Uauá e Monte Santo.
O caráter canudense do encontro não foi esquecido e o principal artista da cidade, Bião de Canudos, deu as caras em Pirituba para cantar a história de Conselheiro em suas melodias sertanejas. Trata-se de um esforço coletivo em que cada um contribui com o que pode.
Dono de uma pequena gráfica, Ivan Sá, de 34 anos, cujo tataravô era um dos Gama que se tornou discípulo de Conselheiro, faz os impressos da festa e, de quebra, mostra seus dotes artísticos cantando sertanejo e forró com sua banda por um cachê simbólico. Ele veio para São Paulo em 2000 atrás de emprego e melhores condições de vida. “Conheci o grupo em 2007 e gostei deste sentimento de comunidade”, diz ele.
Festa junina
O bancário aposentado João Evangelista Régis, de 63 anos, vice-presidente da Upic, diz que o sucesso da rede social canudense estimulou o grupo a realizar este ano, em São Paulo, outra tradição cultural nordestina: uma festa junina típica dos sertões. Para não coincidir com os festejos que ocorrem todos os anos na Canudos original, ela acontecerá em São Paulo em maio.
Os avós de João Régis, Reginaldo José de Matos e Joana da Conceição, eram seguidores de Conselheiro. Ele nasceu em Canudos e veio para São Paulo na década de 1970. Mora há 24 anos em Campo Limpo, Zona Sul de São Paulo, apartamento que funciona também como uma espécie de escritório informal da UPIC, onde se reúnem com frequência os mais ativos membros da associação.
A mulher de João Régis, Fátima Regina Paschoalini, de 34 anos, em suas próprias palavras “a mais canudense das paulistas”, é uma das maiores entusiastas da associação e espécie de secretária executiva. “Eles têm as ideias. Eu coloco em prática”, diz ela.
E ideias não faltam. Elas vão da organização de peregrinações turísticas para Canudos à criação da Casa Canudos em São Paulo, um lugar que será a sede da UPIC e sediará os eventos relacionados à comunidade e sua história, projeto que vem sendo gestado com a ajuda da Universidade Estadual da Bahia. É a memória de Antônio Conselheiro espalhando-se do sertão baiano para o Sul maravilha.
Matéria extraída de O Globo – SP (Foto de Josemario Nascimento)