Acostumamo-nos a comparar política ao que há de pior, a canalhices e negociatas, a bravatas e oportunismo, a privilégios e bandalheiras. Para a população em geral, distante dos gabinetes, político virou quase sinônimo de criminoso. Nem sempre foi assim. Há cinquenta anos, o país foi sacudido por um movimento que mobilizou grandes massas e abortou um golpe civil-militar. No epicentro, um governador de estado.
Era 1961. Jânio Quadros, malandro, renuncia à presidência da República no dia 25 de agosto, esperando voltar nos braços do povo e com poderes extraordinários. A manobra falha. Jango, vice-presidente em visita oficial à China, é avisado de que há um movimento militar contrário à sua posse, prevista pela Constituição. Jango poderia ser preso quando desembarcasse no Brasil. Mais uma crise verde-oliva. Parecia tudo armado para o golpe, mas… No sul, há resistência.
Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul, comanda a Campanha da Legalidade, para garantir a posse de Jango. Não foi um movimento trivial. O 3º Exército, sediado no sul, tinha o maior contingente do país. Se aderisse aos golpistas, poderia haver um banho de sangue. Brizola magnetizou os gaúchos com discursos inflamados e dirigiu-se à nação através dos equipamentos da rádio Guaíba, provisoriamente instalados nos porões do Palácio do governo. Foi a chamada Cadeia da Legalidade.
As tropas do 3º Exército recusaram-se a aderir aos golpistas, desidratando seu poder de fogo, e a Campanha foi vitoriosa. Depois de intensas negociações, Jango volta ao Brasil e, mesmo manietado por uma emenda parlamentarista, assume a presidência.
Da notável Campanha da Legalidade, que completa meio século, vale registrar alguns dados, lembrados em artigo recente de Eleonora de Lucena, da Folha de S. Paulo. Eles mostram a dimensão do que aconteceu naqueles dias turbulentos, num país acostumado ao jeitinho e ao conchavo.
Antes de receber o comandante do 3º Exército, general Machado Lopes, Brizola faz o seguinte discurso: “Não nos submeteremos a nenhum golpe. Que nos esmaguem. Que nos destruam. Que nos chacinem neste Palácio. Chacinado estará o Brasil com a imposição de uma ditadura contra a vontade de seu povo. Esta rádio será silenciada. O certo é que não será silenciada sem balas. Resistiremos até o fim. A morte é melhor do que a vida sem honra, sem dignidade e sem glória. Podem atirar. Que decolem os jatos. Que atirem os armamentos que tiverem comprado à custa da fome e do sacrifício do povo. Joguem essas armas contra este povo. Já fomos dominados pelos trustes e monopólios norte-americanos. Estaremos aqui para morrer, se necessário. Um dia, nossos filhos e irmãos farão a independência de nosso povo.”
(Lendo isso, lembrei-me imediatamente do último discurso de Salvador Allende. Cercado pela corja que implantou uma ditadura assassina no Chile, Allende se dirigiu aos chilenos pela última vez, usando um canal de rádio. Entre outras coisas, disse: “Não vou renunciar! Colocado numa encruzilhada histórica, pagarei com minha vida a lealdade ao povo.” E pagou. Quantos políticos, como Brizola e Allende, tiveram a coragem de levar às últimas consequências seus projetos políticos?)
Quando os militares chegaram ao Palácio Piratini para conversar com Brizola, havia cerca de 100 mil pessoas na praça em frente. No momento em que subiam as escadas, Machado Lopes e os generais ouviram o povo começar a cantar o Hino Nacional. Pararam, viraram-se, colocaram a mão no peito e cantaram junto. Pouco depois, o 3º Exército afirmava sua adesão à legalidade. Vocês conseguem imaginar algo parecido hoje em dia, povo e soldados irmanados por uma vontade política? Sei que eram tempos de Guerra Fria, muita polarização ideológica, muita mobilização. Só estou querendo reafirmar que apatia, descaso e mesmo cinismo não são questão de DNA brasileiro.
A população de Porto Alegre era de 635 mil habitantes. Em poucos dias, 45 mil pessoas mobilizaram-se para participar da resistência e receber treinamento militar. Comparando: seria como se 450 mil cariocas se alistassem, hoje, para campanha semelhante. Não estou falando de caminhadas na orla em defesa da liberalização da maconha, nem da defesa de algum animal em extinção. Refiro-me a gente que se apresentou voluntariamente para defender, com risco da própria vida, a legalidade constitucional. Era outro país…
Grêmio e Internacional suspenderam o jogo programado pelo campeonato gaúcho e declararam solidariedade à campanha. Lembrei-me de uma viagem recente ao Uruguai. Estava nas ruas uma campanha de coleta de assinaturas para a convocação de um plebiscito pela revogação da anistia dos militares que torturaram e assassinaram opositores entre 1973 e 1985. O time de futebol de areia uruguaio convocou a imprensa e declarou apoio à campanha. Que diferença com os Neymares, Kakas e Robinhos, deslumbrados com penteados extravagantes e/ou pregações religiosas!
A campanha teve um hino:
Avante Brasileiros
De pé, (bis)/ Unidos pela liberdade./ Marchemos todos juntos / Com a bandeira que prega legalidade./ Protesta contra os tiranos,/ Te recusa à traição. / Que um povo só é bem grande,/ Se for livre a sua nação.
O hino, de autoria de Demóstenes Gonzalez, Lara de Lemos e Paulo César Pereio (ele mesmo!), teve dois arranjos, feitos pelos maestros Alfredo Hulsberg, Karl Faust e Salvador Campanela. A letra, depois, foi ampliada e gravada na Rádio Farroupilha pelo Coral supervisionado por Madeleine Ruffier.
Não sou e nunca fui brizolista. O caudilhismo centralizante do velho Briza levou, por exemplo, a uma administração confusa e sem participação dos movimentos sociais no governo do Rio. Isso, no entanto, não diminui minha admiração pela Campanha da Legalidade.
Foi uma das mais vigorosas demonstrações de paixão política e comunhão com a vontade popular de que tenho conhecimento. Merece lugar destacado na memória coletiva dos brasileiros. E sem essa de que “brasileiro é bonzinho!”, como se fosse um destino manifesto sermos reféns dos conchavos e das táticas conciliatórias da classe dominante. Lembrai-vos de 1961!”
Por Jacques Gruman – extraido do jornal Tribuna da Imprensa