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Filósofo José Lisboa: “O mundo avança, mas a Igreja insiste em proibir e negar”

Sala de Leitura (SL) – As comunidades virtuais parecem evidenciar o aspecto gregário do espírito humano. Esse seria um indicativo de que é possível haver comunidades cristãs autônomas, mais livres e tão simpáticas e atraentes quanto aquelas que proliferam na internet?

José Lisboa (JL) – Pode e já existem. Porém, a condição gregária e a dimensão comunitária da fé cristã exigem o encontro, o contato entre as pessoas. Não podemos viver somente de “virtualidade”, uma vez que este tipo de contato entre as pessoas permanece abstrato e superficial. O ser humano, para ser ele mesmo, precisa se encontrar face a face com um tu. Sem isso ele se perde, se esvazia e se desespera. Não por acaso, apesar do multiplicar-se de comunidades virtuais, aumenta entre as pessoas, particularmente entre os jovens, a solidão e a depressão. É a falta do contato com pessoas concretas, de carne e osso.

SL – Você acredita que a maioria dos católicos que ainda enchem as igrejas no Brasil e na América Latina está em condições de compreender a análise crítica que se faz quanto à instituição eclesial de que participam?

JL – Claro que não. Aliás, as igrejas católicas e evangélicas ainda estão cheias porque as pessoas não desenvolveram o espírito crítico. Não que não seja possível ter consciência crítica e participar de uma igreja. Mas se as pessoas tivessem consciência crítica não mais participariam desses tipos de igrejas que estão por aí. Na Europa, onde a consciência crítica é maior, a deserção das igrejas é bem visível. Só na Alemanha, segundo pesquisas publicadas

em 2009, mais de 200 mil pessoas deixam as igrejas a cada ano. No Brasil ainda temos muita gente nas Igrejas porque mais da metade das pessoas é formada de analfabetos funcionais: pessoas que não pensam, não analisam, não têm consciência crítica. Mesmo assim as pesquisas estão mostrando que a frequência de jovens aos templos cristãos está abaixo de 1% do total de jovens brasileiros. Neste caso verifica-se o que o escritor latino Lucrécio disse no século I a.C. na sua obra De rerum natura (Sobre a natureza das coisas): “se os homens vissem que há uma saída segura para as suas tribulações, teriam condição de opor-se às religiões e às ameaças desses adivinhos”. Hoje, muitas dessas condições existem e a tendência das pessoas é se afastarem das igrejas, mesmo permanecendo religiosas.

 

SL – Como é possível despertar a consciência crítica em leigos e leigas habituados a aceitar passivamente ideias e imposições do clero?

JL – No meu entendimento não é possível. Só quando os leigos e as leigas cortam definitivamente o “cordão umbilical” que os mantêm atrelados aos padres, poderão ter consciência crítica. Neste sentido é fundamental que os leigos mais conscientes e críticos ajudem os outros leigos e as outras leigas a ter consciência crítica. Trata-se de um trabalho difícil e demorado, pois o complexo de dependência foi introjetado neles durante muitos séculos. Por séculos e séculos os leigos e as leigas viram-se como simples “cordeirinhos”, objetos da “cura pastoral dos padres”. Nunca se viram como cidadãos e cidadãs do Reino, como povo de Deus, como pedras vivas da Igreja, como afirma explicitamente a primeira Carta de Pedro (2,4-10). Para romper tal dependência é indispensável que os leigos e as leigas se vejam na condição plena de povo de Deus. Pelo batismo e pela crisma se tornaram cristãos plenos, sem necessidade de pedir permissão alguma e nem a “bênção” dos padres e dos bispos.

SL – Com toda a sua experiência teológica e vivência em diferentes regiões do país e na Europa, como você analisa a Igreja Católica no mundo e no Brasil, hoje?

JL – A situação é muito delicada porque a Igreja Católica não consegue ler os “sinais dos tempos” (Lc 12,54-57), ou, como diz Jesus neste texto, não consegue perceber por si mesma o que é justo. O mundo avança, as pessoas percebem as coisas com mais realismo e naturalidade e querem mais autonomia e liberdade. Enquanto isso a Igreja Católica insiste em proibir e negar. Ao invés de fomentar a autonomia, a liberdade e a responsabilidade das pessoas, prega o medo e a dependência. Ao invés de motivar o exercício da justiça, da tolerância e da solidariedade, se junta e defende os corruptos e pessoas cuja ética é duvidosa.

As recentes manifestações contra o papa na Espanha e na Alemanha eram expressão dessa insatisfação. Penso que se a Igreja Católica Romana insistir na contramão da história não terá futuro. Poderá até continuar tendo muitos fiéis, mas não conseguirá mais ser sinal do Reino de Deus. Que sinal pode ser uma Igreja, cujo líder maior foi recentemente acusado de crimes contra a humanidade, junto ao Tribunal Penal Internacional, em Haia, na Holanda?

SL – Gramsci dizia que a religião poderia se tornar “o ópio do povo”, mas que ela não era essencialmente isso e admitia a importância do papel que a religião desempenha nas sociedades. Em sua opinião, as sociedades ainda precisam de religião. Por quê?

JL – Antes mesmo de Gramsci, Feuerbach e Karl Max já tinham dito a mesma coisa. Com certeza a religião, há pelo menos 150 mil anos, desempenha uma função significativa nos grupos humanos e sociedades. Neste sentido eu diria que as sociedades precisam da religião, enquanto ela ajuda o ser humano a sair de si mesmo e a ir em busca daquilo que está além dele mesmo. E como a pessoa humana não pode ser feliz e realizar-se plenamente se não for capaz de transcendência, diria que ainda precisamos de religião. Porém, nem toda religião consegue desenvolver tal função. Como Voltaire, sou do parecer que a melhor religião é aquela simples, com pouquíssimos dogmas, que ajude as pessoas a serem mais justas e a não acreditar em absurdos, em coisas impossíveis e contraditórias. A melhor religião, disse Voltaire em seu Dicionário Filosófico, é aquela que não inunda a terra de sangue, que não iguala Deus a um soberano ou um padre incestuoso, homicida e corrupto.

SL – Como é possível explicar o paradoxo entre uma Igreja que está reconhecidamente em crise e que ao mesmo tempo reúne uma multidão de jovens de todo o mundo ao redor do Papa?

JL – Zygmunt Bauman, sociólogo e filósofo polonês radicado na Inglaterra, chama este tipo de comportamento das pessoas, e da atual juventude, de “cultura de cassino”. Sabemos que as pessoas vão ao cassino para jogar, para fazer apostas. Assim sendo, estes grandes eventos dão a impressão de vitalidade, mas, na verdade, expressam claramente a crise da Igreja. De fato, o que caracteriza tais eventos eclesiais é a ausência de sedimentação de laços duradouros. As pessoas ficam encantadas apenas por um instante passageiro. Neles não há nenhuma experiência verdadeira de comunidade. Embora, em princípio, pareça haver muita união entre os membros, na verdade não existe, pois os laços são eternos apenas “enquanto duram”, ou seja, enquanto satisfazem a curiosidade das pessoas. Cessado o evento, as pessoas debandam, os laços se desfazem por completo, pois todos estão tomados apenas pela curiosidade e não pela solidariedade. Terminado o jogo, finda as apostas, o cassino fecha as portas e as pessoas se esquecem por completo do que aconteceu lá dentro, especialmente aquelas que saíram perdendo nas apostas. Portanto, essa “multidão de jovens” em torno do papa é a expressão mais evidente de uma crise, uma vez que o cristianismo não acontece neste momento, mas no dia a dia da vida. E no dia a dia da vida o que está acontecendo? Onde estão os jovens?

SL – O crítico da Igreja costuma ser bastante hostilizado pelos setores mais conservadores e pelos mais ignorantes que parecem enxergar a estrutura como algo por demais sagrado para merecer a crítica. Como você lida com este aspecto de sua atuação filosófica e teológica?

JL – Sem medo e sem me importar com as hostilizações dos que se acham donos da verdade e das chaves do céu e sem preocupações com os que se submetem à dominação eclesiástica. Sempre acreditei no princípio bíblico de que é preciso colocar-se nas “portas dos templos” (Jr 7,1-11) para denunciar as ilusões e as palavras mentirosas de determinados tipos de religiosidade. Isso tem um preço, mas vale a pena.

SL – Na atual conjuntura eclesial, você considera que ainda existem religiosos e leigos que conseguem se aproximar consideravelmente daquilo que é proposto por Jesus, no Evangelho?

JL – Com certeza. São poucos, mas estão por aí. Não aparecem na mídia, nem mesmo na mídia católica, mas continuam firmes. Basta lembrar a figura de Dom Erwin Kraütler, bispo prelado do Xingu, do padre José Ionilton e de Zé Vicente que, apesar do ostracismo no qual são colocados pelo atual sistema eclesiástico, ainda animam a esperança do povo. Estas pessoas formam aquele “pequeno resto” ao qual é confiado o Reino (Lc 12,32).

SL – Frente à crise da Igreja, o que você acredita que deve acontecer no futuro? Haverá Igreja, nesse sentido que conhecemos atualmente, com sua estrutura de poder, por quanto tempo?

JL – O atual sistema eclesiástico foi pensado para durar bastante. Penso que nós que nascemos no século passado não veremos mudanças significativas. Porém, como tem acontecido na história, a realidade forçará a Igreja a mudar. Se ela não mudar morrerá, pois Cristo garantiu a perpetuidade da comunidade de discípulos e de discípulas, seus seguidores, e não, como pensam alguns, a perenidade de um sistema eclesiástico. Além disso, o Espírito de Deus é livre e ninguém o controla, nem mesmo a hierarquia católica. E pode ser que, de repente, ele suscite pessoas, como o santo padre João XXIII, capazes de sacudir a poeira que atualmente ofusca o brilho da Igreja Católica.

SL – Em sua opinião, é necessário apoiar e incentivar a continuidade das comunidades cristãs, ou cada um deve ser encorajado a viver sua fé individualmente?

JL – Recentemente eu e Ana Márcia, minha esposa, escrevemos um livro no qual tratamos desta questão do distanciamento dos cristãos de suas igrejas. O livro, cujo título é Saindo do recinto sagrado (Brasília: Editora Ser, 2011), entre outras coisas afirma que é preciso ajudar-se mutuamente para continuar crendo e sendo cristão no mundo de hoje. Ninguém consegue resistir e viver um cristianismo de fibra, permanecendo isolado. Os que ainda acreditam na força do cristianismo precisam se unir e, deixando de lado as picuinhas religiosas, lutar por um mudo melhor. O cristianismo é feito essencialmente de pequenas comunidades, é a “religião da casa” (At 16,40), na qual as pessoas sentem o calor do aconchego e da ternura. A Igreja dos templos, fria e distante, surgiu a partir do momento em que o cristianismo se uniu ao império e adotou para si os costumes e normas imperiais.

 

SL – De que forma o católico consciente das contradições e imposições de sua Igreja pode proceder para preservar sua fé e os laços comunitários, sem ser conivente com situações que não estão de acordo com o Evangelho?

JL – Cultivando e mantendo a sua liberdade, a qual é condição para permanecer cristão. O cristianismo é a religião das pessoas livres, das pessoas que não se entregam e nem se deixam manipular. Paulo na Carta aos Gálatas é muito incisivo em afirmar que o cristão que conquistou a sua liberdade não pode voltar atrás e ceder às pressões das falsas lideranças (Gl 5,1), mesmo quando essas pessoas se apresentam como sendo “anjos do céu” (Gl 1,8). Hoje há uma enxurrada de pessoas se apresentando como “anjos de Deus” e o católico tem que ficar de olho aberto para não se deixar enganar. Na verdade o que querem esses falsos “anjos” é propor “outro evangelho” e não aquele de Jesus. O católico consciente precisa andar com os próprios pés, uma vez que, sempre segundo Paulo, aquele que fez uma experiência profunda de Jesus Cristo não precisa de nenhum capataz, de nenhum fiscal para lhe dizer o que é preciso fazer. Ele mesmo sabe como agir, como se comportar. “Chegada a fé, já não estamos sob os cuidados de um capataz” (Gl 3,25).

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