Em certo dia do ano de 1962, ao cair da tarde, no entroncamento de Bendegó, uma rural Willys despontou no horizonte rompendo os últimos quilômetros empoeirados da BR-116, conduzindo uma pequena equipe de filmagem que tinha como destino o histórico povoado de Canudos, situado 12 km adiante.
A equipe, liderada pelo jornalista e produtor Carlos Gaspar, estava cansada após mais de sete horas de viagem, sertão adentro, partindo de Salvador. Mas, em todos, o entusiasmo era incontido: iriam filmar em Canudos. Seriam as primeiras imagens em movimento do célebre arraial fundado em 1893 pelo beato cearense Antônio Conselheiro.
Um dos mais importantes acontecimentos sociais e políticos da história do Brasil, Canudos teve seu primeiro registro imagético em setembro de 1897, quando o fotógrafo Flávio de Barros acompanhando a comitiva do ministro da guerra, Marechal Carlos Machado Bittencourt, desembarcou no epicentro do conflito armado. Flávio de Barros deixou o único e precioso acervo de 72 fotografias sobre as últimas semanas do combate no sertão, que mobilizou mais de 12 mil soldados do Exército contra os seguidores do Conselheiro.
Em 1962, passados 65 anos da guerra, Canudos estava prestes a sofrer a sua segunda e definitiva destruição, não mais pelas bombas lançadas pelo exército e sim pelas águas do rio Vaza Barris, represadas em um açude projetado pelo governo. A construção do açude estava em vias de ser concluída e Carlos Gaspar percebeu no fato, uma ótima oportunidade para um documentário, o que lhe daria a primazia da captação de imagens em movimento, in loco, dessa grande saga sertaneja ocorrida no sertão da Bahia. Vale o registro que Humberto Mauro, um dos pioneiros do cinema brasileiro, já havia abordado o tema de forma transversal, quando fez Euclides da Cunha (1944, doc, PB, 14 min).
Carlos Gaspar durante vários anos foi repórter da revista O Cruzeiro e trabalhou nos Diários Associados. No final dos anos 1950, idealizou o projeto denominado A Grande Jornada, uma série de documentários sobre o Brasil, então em fase de ampliação de suas fronteiras econômicas e culturais. Sob o patrocínio da Vasp, o projeto, tido como a primeira série de documentários na TV brasileira, em três anos produziu mais de uma centena de filmes em 16 mm (PB). Durante este período, Carlos Gaspar e sua equipe percorreram boa parte do interior do país, registrando imagens de um Brasil ainda não devassado.
A escolha de Canudos, como um dos temas a merecer um registro documental era compreensível. No início dos anos 1960, a ferida da guerra que provocou a morte de mais de 25 mil pessoas, manchando com sangue os brasões da República e do Exército brasileiro ainda não estava cicatrizada. O historiador José Calazans, maior estudioso do tema, dizia que durante a primeira metade do século XX, Canudos permaneceu preso a “gaiola de ouro” de Os Sertões, famoso livro de Euclides da Cunha lançado em 1902. Contudo, a partir de 1950, teve início o fértil período de sua reinterpretação histórica, através dos escritos do próprio José Calazans (1950) e mais Odorico Tavares (1951), Abelardo Montenegro (1954), José Aras (1957), Paulo Dantas (1959) e outros.
Neste ano de 1962, o Brasil vivia um intenso movimento politico e cultural. Na linha de frente do governo, João Goulart buscava ampliar sua base de sustentação popular para as reformas de base. No interior do país as Ligas Camponesas levantavam a bandeira “Reforma Agrária na Lei e na Marra”. A UNE expandia os CPC com a defesa da “cultura nacional e popular”. Eder Jofre era campeão mundial de peso galo e em Nova York, no Carnegie Hall, a Bossa Nova começava a encantar o mundo, que se rendia ao talento de Tom Jobim e João Gilberto. O Pagador de Promessas (Anselmo Duarte) ganhava a Palma de Ouro em Cannes e no Chile, sem Pelé, mas com Garrincha, o Brasil era bi mundial de futebol.
O projeto A Grande Jornada fazia parte deste ambiente de superação nacional, com seu caráter expansionista e desbravador. O objetivo era percorrer os rincões do Brasil, narrando as histórias e seus desafios. Canudos voltava, mesmo que de forma ainda embrionária, a ser tema de interesse nacional e precisava de um novo registro imagético, antes que suas terras, palco de tantos acontecimentos históricos, desaparecessem, agora definitivamente.
Assim surgiu o documentário Um sino dobra em Canudos (PB, 25 min.), dirigido por Carlos Gaspar. Vale destacar na equipe técnica, a presença do alemão Heinz Forthmann (1915 – 1978), conceituado profissional, que entre outros trabalhos, fotografou sob a direção de Darcy Ribeiro, Os Índios Urubus (1950) e Funeral Bororo (1953), referências na história do documentário etnográfico brasileiro.
O filme começa com imagens bucólicas de Salvador nos anos 60: a praia de Itapuã, os saveiros no cais do Mercado Modelo, o Elevador Lacerda ao lado do prédio da antiga Biblioteca Pública da Bahia (demolida em 1971) e uma panorâmica da cidade alta, vista da Praça Cairú. Apresenta estes registros como quem faz uma devoção: “não se pode passar pela Bahia sem lhe prestar homenagem”.
Logo a seguir, Carlos Gaspar convida os espectadores a embarcarem com ele na visita a “um lugar famoso no Brasil”, onde “travou-se a mais incrível guerra da história” e “onde agora se escreve a última e definitiva página de toda a sua fascinante história”, “prestes a sumir definitivamente da paisagem” posto que será “sepultada sob as águas de uma represa”. E ufanista, anuncia: “É o progresso, escrevendo o derradeiro capítulo, os últimos dias de Canudos”.
As imagens no sertão começam com grandiosas panorâmicas das serras em torno da cidadela conselheirista, compondo um belo e expressivo mosaico da bacia geomorfológica do rio Vaza Barris. Surge então, o registro laboral dos caminhões, tratores e centenas de trabalhadores braçais, revelando a grandiosidade do projeto de construção do açude que iria inundar uma área de 75 milhões de metros quadrados.
A construção do açude, sob a responsabilidade do DNOCS, foi um processo longo e com muitas interrupções. Iniciado os estudos no governo do General Dutra (1946-50), definido o local no segundo governo Vargas (1951-54), a obra somente viria a ser concluída em março de 1969, em plena ditadura militar, no Governo Costa e Silva.
O narrador do filme afirma que “as águas da represa, vão levar o progresso e o bem estar a toda aquela imensa região agreste, mas vão por outro lado, destruir uma discutida página da história do Brasil”. Era o reconhecimento, mesmo tímido, de que na escolha da localização do açude, a presença de uma povoação e a importância histórica da área a ser inundada não foi levada em conta, apenas a sua “viabilidade técnica”.
A seguir, Gaspar surge ao lado de uma representante do Museu da República, apresentando dois objetos da guerra, pertencentes ao Museu, ambos cheios do simbolismo que permeia essa história sertaneja. O primeiro é uma corneta, que segundo o narrador, “tocou a última carga de Canudos” fazendo com que os soldados ocupassem a cidade pondo fim “a guerra dos jagunços”. Entusiasmado, o narrador comenta que “os jagunços de Antônio Conselheiro […] era uma gente de uma incrível ferocidade” e apresenta então, o segundo objeto: um facão “capaz de degolar com um só golpe”, que foi “encontrado em poder do jagunço José Pedrão e bem revela a ferocidade daquela gente”. Expressando o histórico preconceito da elite citadina, o narrador destaca com ênfase a “violência” na posse de um facão, instrumento indissociável da indumentária do homem sertanejo, mas se omite na qualificação das bombas que destruíram uma cidade e provocaram a morte de milhares de pessoas.
Mais adiante, Gaspar convida os expectadores a conhecer “a cidade fantasma”. E embalada por uma música intensa e dramática, a câmara passeia por ruas e becos do antigo povoado, mostrando a decadência de um lugar outrora florescente. Ao mesmo tempo, segue perenizando imagens valiosas de um cotidiano ainda vivo, em que se fazia presentes homens, mulheres, crianças e animais.
Um dos pontos altos do documentário está na presença de José Ciríaco (Tizé), velho combatente de Canudos, que alimentou a memória de várias gerações de canudenses e estudiosos do tema. Por ser única, a fala de Ciríaco examinando um vestígio da guerra é impactante: “Esta bala foi do canhão que derrubou a igreja, as casas e matou muita gente. Acabou-se aqui Canudos foi devido a estes canhões que vieram e acabaram com todo pessoal, as obras, as igrejas, casas, tudo”. O velho Ciríaco, depositário de uma memória única, “lamenta a sorte de Canudos, e quer que o governo lhe indenize sua pequena propriedade e assim lhe garanta seus últimos dias”.
Pretensamente reconhecedor da memória canudense que se estava a destruir, entretanto o filme abraça claramente a opção pelo “progresso”, construindo um forte contraponto entre as imagens do “velho José Ciríaco, que só vive do passado e o menino de Canudos para quem um futuro diferente se descortina, pois a represa lhe trará água, luz, energia e com elas oportunidades até então inéditas, naqueles sertões inóspitos”.
Um momento de forte emoção e rara beleza é a longa panorâmica com Tizé sentado nas ruinas da igreja erguida por Antonio Conselheiro, tendo ao fundo, distante, as casas, a praça principal e a nova igreja. No ano seguinte (1963), Glauber Rocha também utilizaria o mesmo cenário, mas com outro personagem, Antonio das Mortes e produziria outra panorâmica antológica em Deus e o Diabo na Terra do Sol, lançado em 1964.
Já próximo do seu final, a narração amplia seu potencial dramático: “E assim vão se passando vazios e tristes, os últimos dias de Canudos. Se alguma alegria transparece, é no sorriso das crianças, delas será o futuro, delas também será a cidade, que se está construindo perto da barragem do açude. Ali nascerá, com esperança e progresso, a nova Canudos.” E nos apresenta outra personagem: Dona Ermenegilda, 74 anos, que aparece vestida de preto, caminhando por ruas desertas, varridas por um vento forte. Dona Ermenegilda, segundo a narração, “pouco se recorda das lutas de Antonio Conselheiro, ignora a importância histórica do lugar, mas não se conforma em viver em outro lugar, por isso, o que pede a Deus, é que a deixe morrer com a sua cidade”.
Simbolicamente o filme escolhe o cemitério como seu último cenário e para lá conduz Dona Ermenegilda, cujas imagens fundem-se com sepulturas e as águas do rio Vaza Barris. E apoteótico, o narrador finaliza: ““Mas Dona Ermenegilda há de se conformar, porque a cidade de Canudos vai ressurgir quando as águas chegarem, para destruir o passado, mas criar o futuro […] a represa vai trazer a água benfazeja a esta terra seca, a luz que ilumina, a energia que cria oportunidades. Enfim vai trazer o progresso e o progresso significa que não haverá mais Canudos, porque não mais se enfrentará a rebelião da ignorância com as armas da ignorância”
Explicitamente reprodutor do discurso monofônico e autoritário de um segmento social dominante, comuns em reportagens documentais da época, no entanto, Um sino dobra em Canudos, se constitui em um documentário seminal da extensa filmografia canudense. Filmado na Bahia, teve exibição nacional pela antiga TV Tupi no mesmo ano de 1962, há 50 anos. Seu caráter pioneiro e detentor de imagens únicas e valiosas, o coloca no patamar das importantes obras do documentário nacional. Como declarou Carlos Gaspar na apresentação do filme em 1989, 27 anos após a sua produção, quando a C&A Modas, numa iniciativa baseada na Lei Sarney, produziu cópias para doar a pesquisadores e museus no Brasil: “Hoje em dia, esses filmes não mais nos pertencem e sim a memória nacional”.