“Eu sou um caboclo feliz! Rá! Se eu nascesse de novo, eu queria ser o mesmo Mané Luiz. Se eu nascesse de novo e pudesse escolher, mais do que sou não queria ser. Eu queria nascer na fazenda da Caiçara, lá em Exu, Pernambuco, mesmo na divisasinha do Ceará. É por isso que eu costumo dizer que uma banda minha é pernambucana e a outra cearense”.
A banda cearense de Luiz Gonzaga, como ele fala no disco Volta pra Curtir, de 1972, é a da Feira do Crato, da passagem em carro de boi e a pé por sobre a Chapada do Araripe fugindo da vergonha de uma surra, dos anos de praça no 23º Batalhão de Caçadores em Fortaleza, dos estudantes cearenses que o instigaram a deixar o choro e o tango pela música nordestina no Rio de Janeiro, de Humberto Teixeira e a invenção do baião.
Do lado de cá da serra, Luiz Gonzaga deixou de ser apenas o filho de Januário e Santana, daqui começou a trilhar o caminho que o levaria a ser o primeiro grande astro e representante da música nordestina no País, e ao lado de um cearense dominou por quase 10 anos, entre 1947 e 1957, o espectro radiofônico e o mercado fonográfico nacional.
No começo da década de 1970, quando grava o LP citado acima, ele já é consagrado como o Rei do Baião, o homem – nas palavras do músico e professor aposentado de Teoria Literária da USP, José Miguel Wisnik – responsável por “traduzir as culturas orais do universo agropastoril do couro e do gado, do semiárido nordestino, para a linguagem dos meios de massa, isto é, para o formato cancional dos auditórios das rádios e do disco”.
Aos 60 anos então, Luiz Gonzaga já não está mais no auge de duas décadas atrás, é rechaçado por parte da juventude pela relação amistosa com os militares no poder, mas sua música continua em evidência nas novas versões de artistas como Caetano Veloso e Gilberto Gil, e, sem dúvida, é o grande ícone de uma cultura que ajudou a plasmar midiaticamente.
Continua ele na gravação ao vivo: “Eu queria ser o Rei do Baião, mas não era mole, não. Quando eu chegasse no Rio de Janeiro em 39, eu ia tocar na zona violenta, da pesada, lá no Mangue, correndo pires nos gringos. Queria ser tudo isso… Oxente! Eu queria ser o Rei do Baião! Até que uma certa noite chegasse lá assim um grupo de cearenses, diziam que era universitários, sei lá o que é isso! Eram estudantes mesmo! Depois de me agradar e muito, fizeram uma exigência: ‘olha caboclo, quando a gente voltar aqui outra vez, nesse lugar, nós só damos dinheiro a você se você tocar um negócio lá daqueles pé de serra. Você não é sertanejo? Você não é da serra do Araripe? Tá feita a exigência.’ Aí eu fiz uma recapitulação.”
A recapitulação exigida pelos estudantes cearenses é a de reaprender as músicas de sua infância e juventude no Exu, a sonoridade peculiar do Nordeste, com suas reminiscências medievais, com seus sanfoneiros de oito baixos (como o era seu pai), seus aboiadores, repentistas, rezadeiras; a recapitulação do que o escritor Mário de Andrade na década de 1920 havia chamado de “o povo mais musical do Brasil”.
No entanto, essa memória, que volta como eletricidade com o “Vira e Mexe” (a música que canta para os estudantes cearenses e com a qual recebe em seguida a nota máxima no programa de calouros de Ary Barroso) e abre uma vereda até os dias de hoje na música brasileira, precisar ser também reinventada. Luiz Gonzaga faz isso ao se travestir num mistura de vaqueiro/cangaceiro e ao trocar o regional de choro pelo triângulo e zabumba no acompanhamento de sua sanfona.
Processo criativo
A tipografia utilizada neste caderno, projetada pelo designer Yuri Leonardo, tem motivos inspirados em peças da sanfona (teclas e baixos) onde a disposição das letras dialoga com a métrica sonora do baião.
Começo dos anos 1970
Quando Gonzagão grava Volta pra Curtir, ele já é consagrado como o Rei do Baião, o homem responsável por “traduzir as culturas orais do universo agropastoril do couro e do gado, para a linguagem dos meios de massa”, segundo José Miguel Wisnik
Antepassado cearense
Na segunda metade do século XIX, Januária e Ifigênia – bisavó e avó de Luiz Gonzaga – chegaram ao lado pernambucano da serra do Araripe fugidas de um surto de cólera que dizimou boa parte da população da cidade cearense. (Informações do jornal O Povo).